A pior coisa sobre perder aquele emprego não era nem ficar afastada da selva editorial da revista Nuovo, mas sim do meu único amigo por lá, João Rivera ― mais popularmente conhecido como apenas “Rivera”, para diferenciar-se de seu homônimo na redação, João Damasco ―, de quem eu não conseguia me ver longe ou, pelo menos, me ver longe e sobrevivendo a isso.
Felizmente, ele ainda não havia chegado para trabalhar àquela hora, o que me poupava da terrível cena de adeus. Nós éramos bem ligados dentro do ambiente de trabalho, mas era apenas isso. O fim do meu emprego era provavelmente o fim daquela amizade, por mais triste que isso soasse.
O elevador se abriu com uma campainha, me trazendo de volta ao mundo real.
Oh, claro!
Claro que quem tinha que estar lá dentro era exatamente Rivera. Ele olhou para mim de seus um e noventa imponentes, os olhos azuis brilhando em contraste com seus belíssimos cabelos negros, e o sorriso ― por me ver, gosto de pensar ― rapidamente murchando ao notar a caixa de papelão que eu segurava ― ou, mais especificamente, o que aquilo queria dizer (a minha despedida daquele emprego).
Rivera era um daqueles caras naturalmente carismáticos que se torna, sem esforço algum, o preferido de todas as pessoas com quem convive. Aquilo tinha sido uma realidade para mim mesmo antes que ele me dissesse sequer um “oi”; eu sempre o admirei de longe, secretamente. Até que, numa estúpida festa de escritório, ele parou ao meu lado e puxou assunto sobre o tédio e... foi isso. Nos tornamos melhores amigos. Eu mal podia acreditar na minha sorte e, algumas vezes, ainda me via ficando nervosa, com medo de dizer a coisa errada perto dele.
Mas ele, estranhamente, sempre se sentia muito à vontade perto de mim.
― Que isso? É o fim do mundo, e esqueceram de me avisar? ― Rivera exclamou, tentando debochar em meio ao espanto. Eu apenas sorri. Ele retornou ao elevador e pegou a caixa das minhas mãos numa oferta cavalheiresca. ― Por que se demitiu, Anninha? Eu pensei que faríamos isso juntos, caso desse a louca e quiséssemos pular do barco. Por que não honrou nosso pacto de suicídio?
Eu suspirei. Como ele conseguia ser tão adorável em qualquer circunstância? Por que eu não conseguia expressar meu mal-humor a ele? Por que eu tinha que agir como uma colegial apaixonada com pernas de gelatina?
― Não me demiti, Rivera ― informei, desanimada, apertando o botão do térreo.
Ele endireitou a coluna e arregalou os olhos.
― Oh.
Ficamos em silêncio até que o elevador abrisse outra vez suas portas de metal cromado. Eu fiz menção de pegar a caixa de volta, mas Rivera negou.
― Onde está seu carro?
― Eu não… hã… Eu não tenho um.
Temi soar como uma pobretona. No entanto, Rivera não parecia fazer muito caso daquilo.
― E como pretende carregar tudo isso até a sua casa? ― Ele sacudiu a cabeça. ― Não. Nada disso. Deixa no meu carro que eu levo para você após o expediente, está bem?
Ele não esperou que eu concordasse. Seguiu até seu lindo Mercedes prateado e colocou a minha caixa no banco do carona. Ele parecia ter seus passos tão em ordem que eu me senti um pouco mal por estar uma bagunça.
― Precisa de alguma dessas coisas até o fim do dia? ― perguntou, concernado.
Sacudi a cabeça. Possivelmente, eu não precisaria de nada daquela caixa até o fim da minha vida, o que eu não conseguia me decidir se era triste ou digno de comemoração.
Rivera fechou o carro e me segurou pelos ombros, olhando bem no fundo dos meus olhos.
― Você tem certeza de que está bem? ― sussurrou.
Eu espremi meus lábios, e por um segundo deixei transparecer uma ruga de tristeza no centro da minha testa. Rivera sorriu consigo mesmo.
― Claro ― ele disse, me abraçando bem firme. ― Pergunta imbecil. Me desculpa.
― Não tem problema ― murmurei.
Ele riu, ainda não me deixando ir livre.
Eu adorava o seu cheiro. Menta selvagem, quase como um chiclete ou hálito matutino de pasta de dente, mas um pouco mais exótico que isso. Provavelmente era o aroma do pós-barba, e algumas vezes eu tinha vontade de provar seus lábios apenas para ter certeza. E, sim, eu estou ciente de que amigos não deveriam ter essas espécies de sentimento por amigos. Mas não era como se eu pudesse evitar.
― Sua casa continua no mesmo lugar? ― ele perguntou por entre os meus cabelos escuros.
― Espero que sim... ― brinquei, arrancando mais uma de suas risadas gostosas.
― Engraçadinha ― ele me soltou, e segurou as minhas mãos enquanto tornava a encarar os meus olhos.
― Rivera! ― gritou alguém que tinha saído do elevador. ― Estamos precisando de você lá em cima!
― Já vou! ― ele gritou de volta, mas olhou para mim no instante seguinte, como se não quisesse me perder de vista.
Certo. Eu notei que ele ainda segurava as minhas mãos. Nossos dedos estavam entrelaçados, e aquilo de alguma forma parecia natural, como se o fizéssemos sempre. O que não era necessariamente verdade.
― Ei ― Rivera soltou uma das minhas mãos para poder afastar um fio de cabelo dos meus olhos. ― Assim que você arranjar um novo emprego, me avise, que eu pulo fora daqui. Estou cansado desse lugar, e não tem a mínima graça sem você.
― E-eu... ― comecei, meio sem saber como terminar.
As palavras simplesmente tinham fugido da minha mente. Elas ficavam extremamente tímidas na frente de Rivera, o que só me fazia imaginar que eu era algum tipo de pessoa muito perturbada. Ele era o meu melhor amigo, afinal. Eu deveria ser capaz de ter uma conversa coerente com ele, certo?
― Rivera! ― o esquentadinho do elevador berrou outra vez, antes que eu tivesse a chance de colocar meus pensamentos novamente na linha.
― Tenho que ir ― Rivera disse, me medindo uma última vez com seus olhos azuis profundos. ― Vejo você mais tarde?
― Claro.
― Então, até depois ― ele deu um beijo macio na minha bochecha e soltou a minha outra mão, indo para o elevador cumprir seu trabalho.
A marca imaginária dos seus lábios queimou minha face por vários minutos depois disso.
Fui andando para a parada de ônibus e estava quase começando a pensar que a vida não podia ser assim tão ruim ― afinal, quem precisa de mais do que um Rivera para beijar você de vez em quando (mesmo que na bochecha)? ― quando começou a choviscar.
Geralmente, eu não tenho problema algum com chuviscos, mas naquele dia em particular eu só tinha conseguido domar meus cabelos ondulados à base da chapinha, e só uma garota sabe que efeitos pequenas gostas de água têm sobre um cabelo chapado.
Não são efeitos bons.
Tentei proteger minha cabeça com a bolsa, mas, claro a alça mal-costurada esperou exatamente aquele momento super oportuno para se partir, e eu tive que carregar a tal bolsa pelo resto de caminho como um mendigo fugitivo carrega seu trapo de roupas.
Pelo menos a porcaria da bolsa não era de marca.
Ainda assim, aquilo foi o suficiente para me fazer voltar a detestar o dia.
Apressei meu passo quando vi o meu ônibus chegando na parada, mas, claro, estava tudo fácil demais. Eu devia ter desconfiado. Quando fiz sinal para o motorista parar, ele sorriu de um jeito pouco convidativo. A poça de água, formada pela noite chuvosa e acumulada no pequeno declive da parada, atingiu minhas roupas, meu rosto, e até a minha dignidade.
O ônibus não parou para mim.
― Ótimo! ― ironizei, me sentando no velho banquinho de madeira, me preparando para esperar uns bons quarenta minutos até o próximo ônibus.
Ao meu redor, como se achasse graça daquilo, a chuva só ia engrossando.
Eu devia estar sozinha num raio de quinhentos metros.
Quando a água que caía do céu estava tão espessa quanto uma cortina de veludo, os relâmpagos e trovões começaram. Cada estrondo me fazia pular de susto, e eu estava ficando com medo. Estou falando de medo de verdade, não de um simples frio na barriga como as pessoas costumam sentir diante de um teste importante ou na descida de uma montanha-russa. Estou falando de um corrosivo pânico pleno. Estou falando de medo da morte.
Porque, claro, era só o que me faltava... O pior dia da minha vida também ser o último!
Foi apenas quando um raio partiu uma árvore bem na minha frente que eu entendi que teria que procurar um abrigo.
Migrei com dificuldade pelo solo lamacento, procurando qualquer construção que pudesse me servir de refúgio, mas não havia nada. Eu estava no centro de um campo vazio. Então me contentei em vagar sem rumo, sentindo a pressão afiada das gotas em minha cabeça.
Em certo ponto, acho que comecei a chorar, mas as lágrimas logo se perderam com a chuva, e eu não podia diferenciar umas das outras.
― Por quê?! ― gritei aos céus, irritada. ― Por quê?!
É até engraçado como nós sempre pensamos que tudo acontece por um motivo. Como se Deus estivesse lá no céu com nada mais importante a fazer senão bolar meios malignos e cada vez mais complexos de ferrar com a nossa vida.
No entanto, naquela hora, eu não estava achando nada engraçado. Dobrei meus joelhos, sem esperanças, e abaixei a cabeça. Cheguei a pensar que a chuva me enterraria no solo lamacento, e eu apenas seria encontrada dias mais tarde por um cachorro curioso. Se algum dia chegasse a ser encontrada.
Mas, de um modo estranho, não foi isso que aconteceu.
Ao erguer a cabeça, me deparei com uma construção cinzenta e retangular, que aparentava tão abandonada que era quase como se tivesse sido pela última vez habitada por indígenas nativos em tempos pré-históricos.
A chuva não parou para me ver andar até a entrada.
Estupidamente, eu tentei abrir a porta. Devia imaginar que nunca deixariam uma velha cabana com a porta destrancada, não nesse mundo capitalista de hoje em dia. Quando eu estava quase desistindo, percebi que uma das janelas estava aberta.
Rezando para que não me processassem posteriormente por trespassagem, eu entrei pela janela, sentindo um alívio imediato quando a chuva parou de cair sobre mim. Recostei-me contra a parede e respirei bem fundo.
Estava escuro. Eu não podia ver um palmo diante do meu nariz. Tateei à procura de um interruptor que nunca encontrei.
E foi então que eu vi.
Lá do outro lado da cabana, um pequeno ponto de luz brilhava fraco no chão. Eu me abaixei e engatinhei até alcançá-lo. Estendi a minha mão e toquei nele. A luz se esvaiu de modo instantâneo, mas agora eu tinha uma espécie de graveto em minhas mãos.
― Que droga, é pedir demais um pouco de claridade? ― resmunguei para o escuro.
Foi aí que o recinto se fez mais claro que um dia de verão.